Ao longo destes últimos dias, foram reduplicadas na imprensa informações infundadas que atribuíam ao Itamaraty o emprego/uso de uma apostila de exercícios de estruturas verbais nos Centros Culturais de sua rede de ensino no exterior. A reportagem destacava, desse material, exercícios com enunciados cuja interpretação levava à percepção de viés ideológico ou preconceituoso. A divulgação dessas informações causou forte reação crítica ao Itamaraty e percepção equivocada em relação aos Centros Culturais. Como costuma ocorrer em casos dessa natureza, o seu conteúdo foi compartilhado diversas vezes, sem que fosse buscada confirmação de sua veracidade, gerando até mesmo a divulgação de notas de repúdio.
Foram tantas reproduções da reportagem inicial, que fica difícil saber quem foi o seu autor, mas, quem quer que tenha sido, o texto indica que a pessoa não tem (e não procurou obter) conhecimento sobre os Centros Culturais e como se caracteriza o ensino de português em suas unidades, nem sobre os procedimentos do Itamaraty em relação a sua rede de ensino no exterior. O teor da reportagem indica também que o seu autor não possui conhecimento atualizado sobre ensino de línguas, ao considerar que uma instituição de ensino possa valer-se de uma apostila de exercícios estruturais como única fonte de conteúdos. Da mesma forma, verifica-se que o/a jornalista não procurou obter informações claras com a autora do material.
Entre os itens apontados nas notícias divulgadas, destacam-se as seguintes informações: 1) que o Itamaraty estaria obrigando os professores de seus Centros Culturais a utilizar como material didático uma publicação denominada Só Verbos; 2) que o Itamaraty contratara a autora desse material para a sua elaboração, com finalidade de colocá-lo em uso em sua Rede; 3) que esse material apresenta exercícios com enunciados de viés ideológico ou preconceituoso, e 4) que esse era o único material utilizado nos Centros Culturais para ensino do português. Procuraremos, nesta nota, compartilhar informações que sirvam para esclarecer os pontos elencados, abordando inicialmente e de forma pontual o item 2, e tratando os itens 1 e 4 ao longo do texto, de forma integrada. Quanto ao item 3, por não se tratar de material do Itamaraty e nem de uso em sua Rede, conforme apontaremos ao longo de nossas considerações, não nos cabe opinar. Nesse caso, então, remetemos o leitor a declarações da autora publicadas em um veículo de imprensa.
Em reportagem do jornal Correio Braziliense (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/07/15/interna_politica,872274/itamaraty-usa-conteudo-ideologico-em-cursos-de-portugues-para-estrange.shtml), a autora, consultada por esse órgão de imprensa, informa que o material foi elaborado por ela, ao longo de sua atuação profissional, para uso em suas aulas particulares de português para estrangeiros (acessar o link para ler na íntegra as suas declarações e para avaliar as explicações que se relacionam ao ponto 3 – essas explicações não estão no escopo de nossas considerações, uma vez que esse material é de uso pessoal da autora) e que ela o cedeu, gratuitamente, ao Itamaraty, em 2013, quando ele foi então disponibilizado em um repositório colaborativo compartilhado. Entretanto, na mesma reportagem há referência ao material como “cartilha do MRE”, mantendo-se perspectiva equivocada sobre a publicação e o seu uso pelo Itamaraty.
Em relação aos demais pontos (1 e 4), sinto-me na obrigação de aportar informações visando esclarecimento, uma vez que tenho conhecimento dos contextos a que a questão se refere. Faço esse aporte de informações por ter trabalhado (estar atuando) há alguns anos, em ações pontuais (e com periodicidade não sistemática) do Itamaraty na área de português como língua estrangeira, incluindo-se nessas ações a oferta de cursos de atualização para professores dos Centros Culturais em diversas de suas unidades.
Desde 2006, ou seja, há 14 anos (com intervalos em alguns períodos) tenho atuado em ações já indicadas como pontuais (que se encontram devidamente registradas em meu Currículo Lattes), junto a esses Centros, em atividades promovidas pelo Ministério das Relações Exteriores, visando o desenvolvimento de formação continuada e qualificação profissional de professores e coordenadores pedagógicos, incluindo nessa formação aspectos e focos diversos, com destaque para planejamento de cursos, avaliação e desenvolvimento de materiais, princípios, recursos e procedimentos metodológicos, cultura/interculturalidade em contexto de português língua estrangeira, entre outros conteúdos, em consonância com perspectivas contemporâneas de ensino-aprendizagem de línguas. Em anos mais recentes, especificamente 2018 e 2019, foram desenvolvidas atividades também para diretores das unidades, visando a apresentação e discussão de propostas curriculares, que estão em implementação.
Pela atuação em ações dessa natureza, estive em contato direto e conheci pessoalmente os funcionários de carreira (diplomatas) que ocuparam, em diferentes períodos, desde 2006 até a atualidade, a chefia do setor do MRE mais diretamente relacionado à difusão da língua portuguesa no exterior (DPLP – Divisão de Promoção da Língua Portuguesa, denominação utilizada até 2018 e alterada em 2019, atualmente vinculada ao Departamento Cultural e Educacional). Foram quatro diplomatas durante esse período e pude constatar que todos eles sempre atuaram (atuam, no caso do responsável atual), com forte empenho em todas as questões relacionadas à difusão da língua portuguesa e da cultura brasileira, objetivo central da Rede Brasil Cultural do Itamaraty. Saliento, pelo que tenho acompanhado de forma direta, que em ocasiões de necessidade e de realização de atividades de natureza pedagógica ou educacional em geral, o MRE sempre consultou especialistas, convidou-os e contou com eles para as tarefas. Foram (têm sido) diversos os colegas acadêmicos, professores/pesquisadores de Instituições de Ensino Superior, que têm atuado junto ao Itamaraty em atividades dessa natureza, em várias ocasiões, em conjunto ou individualmente.
A referida rede é composta por Centros Culturais (são 24, atualmente – o acesso para conferir é: http://redebrasilcultural.itamaraty.gov.br/menu-a-rede/menu-centros-culturais), Núcleos de Estudos Brasileiros (unidades estruturalmente menores em relação aos Centros Culturais, mas igualmente vinculadas a embaixadas brasileiras (http://redebrasilcultural.itamaraty.gov.br/menu-a-rede/menu-nucleos) e Leitorados (postos de leitorado estão situados em universidades renomadas de distintos países: http://redebrasilcultural.itamaraty.gov.br/menu-a-rede/menu-leitorados).
Minha atuação tem sido mais diretamente relacionada aos Centros Culturais. Conheço in loco e ministrei cursos em 9 deles (Assunção, Beirute, Buenos Aires, Helsinque, Lima, Praia, Roma, Santiago, República Dominicana), mas algumas edições dos cursos contavam com a presença de professores de vários Centros e por essa razão pude conhecer profissionais de todos eles (professores e/ou coordenadores pedagógicos e/ou diretores), e também de 2 Núcleos de Estudos.
Além da atuação em cursos de atualização, também atuei como coordenador acadêmico da coleção Propostas curriculares para ensino de português no exterior, lançada oficialmente no dia 05/05/2020 por ocasião da celebração do Dia Internacional da Língua Portuguesa. Informações sobre a publicação dessas propostas estão disponíveis em: http://funag.gov.br/index.php/pt-br/2015-02-12-19-38-42/3161-mre-e-funag-publicam-a-versao-digital-da-colecao-propostas-curriculares-para-ensino-de-portugues-no-exterior
Um vídeo curto, desenvolvido para apresentação resumida dessa coleção, pode ser visualizado em: https://www.youtube.com/watch?v=4PezEgRcaDs
A publicação dessas propostas, que podem ser acessadas e baixadas, atende a relevante demanda por harmonização de atividades de ensino desenvolvidas pela Rede de Ensino do Itamaraty e a elaboração dos documentos (propostas) contou com a participação de especialistas, que utilizaram não somente os conhecimentos teóricos e práticos, advindos de sua formação e atuação como professores-pesquisadores, mas também com o (re)conhecimento e a utilização de informações e dados dos contextos para os quais as propostas foram desenvolvidas. Conforme se verificará nos seus conteúdos, as propostas são norteadas por concepções contemporâneas de ensino-aprendizagem de línguas e por uma visão de língua como prática social, distanciada, portanto, de qualquer possibilidade de relação com a adoção, pelos Centros Culturais, de um material didático restrito à prática de itens gramaticais específicos e, mais ainda de ter um material dessa natureza como única fonte de amostras de uso do idioma na prática pedagógica.
Torna-se importante salientar que, como desdobramento da elaboração e do lançamento das referidas Propostas Curriculares, encontram-se em desenvolvimento ações que visam a elaboração de materiais didáticos para ensino na modalidade presencial (e incorporando, mais recentemente, a sua extensão para a modalidade virtual), nos Centros Culturais. A produção desses materiais será realizada de forma colaborativa, com a contribuição direta de professores das unidades da Rede e com a participação de especialistas. Para consecução desse objetivo, foi realizada, inicialmente, a Oficina de Materiais Didáticos, em janeiro deste ano, no Centro Cultural Brasil-Argentina, em Buenos Aires, com a participação de coordenadores pedagógicos de 5 Centros Culturais. Na sequência desse trabalho, estão sendo desenvolvidas atualmente, reuniões regulares, na modalidade virtual, envolvendo outros Centros.
Essas ações e constatações estão em consonância com nota do Itamaraty (transcrita a seguir) encaminhada à Imprensa na semana passada e que parece não ter sido publicada na íntegra por nenhum veículo midiático.
O Itamaraty não dispõe de material didático para sua rede de 24 Centros Culturais Brasileiros e 4 Núcleos de Ensino de Português no exterior. A única diretriz a que a rede de ensino de português do Itamaraty está adstrita é a observância aos parâmetros estabelecidos pelos guias curriculares para ensino de português no exterior, amplamente acessíveis ao público pela página eletrônica da FUNAG. O material didático em apreço, comercializado por empresa privada sem qualquer tipo de vínculo com o Ministério, foi encaminhado ao repositório de materiais didáticos da Rede Brasil Cultural em 2013 e não há registro de que o conteúdo desse ou de qualquer outro material disponibilizado na página eletrônica tenha sido objeto de revisão à época. Tendo em conta que não se coaduna com as diretrizes estabelecidas pelos referidos guias curriculares, será retirado da página eletrônica da “Rede Brasil Cultural”.
Em relação a materiais didáticos, é importante ressaltar, ainda, que nesse longo período de atuação, nunca ouvi de nenhum responsável pelas ações do Itamaraty nessa área, nem dos demais professores formadores (colegas acadêmicos de outras instituições de ensino superior) e nem de qualquer professor dos Centros Culturais, qualquer menção à imposição de um ou outro material didático. Esse fato nos permite corroborar o conteúdo da segunda nota encaminhada pelo Itamaraty à imprensa (transcrição a seguir) e que, igualmente à primeira, parece não ter sido divulgada na íntegra, por nenhum meio de comunicação.
O Ministério das Relações Exteriores não obriga o uso desse [o material referido na reportagem] ou de qualquer material didático específico em nenhum de seus Centros Culturais. Os professores têm autonomia para escolher seus recursos didáticos, contanto que não se valham de conteúdo ofensivo ou desrespeitoso ao país ou a terceiros. Não há registro do emprego desse ou de outro material potencialmente ofensivo por nenhum Centro Cultural Brasileiro. Como já mencionado, o material já não faz parte do repositório didático da Rede Brasil Cultural. Todo conteúdo disponibilizado para o ensino de português à época foi gratuitamente cedido pelas editoras. As publicações não são do Itamaraty e, na atual gestão, a Rede Brasil Cultural está sendo reestruturada e material didático próprio está sendo desenvolvido para uso futuro.
Ressalto, ainda, que no contato mantido com profissionais desses Centros Culturais (com muitos deles o contato tornou-se regular e frequente e não somente por ocasião de encontros acadêmicos ou cursos), nenhum deles relatou ter utilizado material do referido repositório colaborativo, o qual averiguei ter sido criado em 2010, com o objetivo de suprir a falta de materiais didáticos para ensino de português como língua estrangeira. Embora tenha sido uma iniciativa relevante o agrupamento e a disponibilização de materiais em um local virtual de onde eles pudessem ser baixados, parece que o ambiente deixou de ser acessado/explorado após algum tempo, o que pode ser atribuído a maior preparação dos professores para elaboração dos seus próprios materiais (há Centros que já possuem livros, apostilas ou conjuntos de unidades elaborados por seus professores, visando atender especificidades dos contextos de atuação), ou mesmo ao crescimento da oferta de livros didáticos para a área de português língua estrangeira (em anos mais recentes), ou ainda à ampliação de acesso a materiais autênticos (textos/materiais orais, escritos ou multimodais, produzidos para circulação geral, sem finalidade didática, mas, por isso mesmo, representativos de usos da língua em situações reais de comunicação e interação e, portanto, relevantes para um ensino significativo, característico da prática pedagógica dos Centros).
Tendo sido postado no repositório em 2013, o material em foco na reportagem nunca foi mencionado por nenhum profissional dos Centros Culturais, com os quais tenho tido contato nos diversos cursos e atividades desenvolvidos em suas unidades, o que indica que ele não deve ter sido acessado ou utilizado.
Nos Centros Culturais, conforme constatamos, ao longo desse período de atividades neles desenvolvidas, e também conforme consta no portal da Rede, há necessidade de atender diferentes demandas e perfis de aprendizes: “No que tange aos cursos de português, os CCBs oferecem módulos diversos, direcionados a diferentes objetivos. Destacam-se os cursos que preparam os alunos para o CELPE-Bras, bem como para o exercício de determinadas atividades profissionais que demandam a proficiência em português brasileiro. Entre elas, destacam-se a diplomacia (há parcerias entre CCBs e escolas diplomáticas locais) e funções jurídicas e militares em países fronteiriços ao Brasil (na América do Sul, por exemplo, determinados CCBs capacitam membros das Forças Armadas locais).” (http://redebrasilcultural.itamaraty.gov.br/menu-a-rede/menu-centros-culturais)
De maneira geral, quaisquer que sejam os objetivos específicos de aprendizagem dos que buscam os Centros Culturais para estudar português, há necessidade de proporcionar aos aprendizes a possiblidade de desenvolvimento de competência comunicativa em português do Brasil para produzirem ações de linguagem que requerem conhecimento de aspectos diversos do idioma. Desde a década de 1960 diversas mudanças ocorreram nos paradigmas de ensino de línguas, na concepção (e no conceito) de língua/linguagem, bem como na sociedade de maneira geral e, portanto, nas motivações e necessidades relacionadas à aprendizagem de um idioma não materno. Se os Centros Culturais oferecessem cursos com foco exclusivo no ensino de itens gramaticais do português (o que, absolutamente, não ocorre nas unidades da Rede do Itamaraty), essas instituições seguramente não teriam o respeito que adquiriram como centros de excelência na difusão da língua e da cultura em seus respectivos países.
Na página da Rede, já mencionada neste texto, há acesso para informações específicas de cada Centro Cultural, em que podem ser encontradas notícias e atualizações relacionadas a diversas atividades desenvolvidas, bem como acesso a suas páginas eletrônicas específicas e/ou a suas páginas em mídias sociais, locais virtuais nos quais o leitor/visitante tem acesso a informações sobre as diversas ações relacionadas aos cursos e outras atividades que os Centros realizam visando alcançar os propósitos de difusão de língua e cultura.
Assim, com base em conhecimento adquirido pela atuação direta nos contextos abordados, asseguro que as informações veiculadas na reportagem em foco, em relação a procedimentos do Itamaraty para sua Rede de Ensino no Exterior, bem como em relação ao uso do material Só Verbos pelos Centros Culturais, não são verdadeiras.
São Carlos, SP, 20 de julho de 2020
Nelson Viana
Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística
Universidade Federal de São Carlos